Escritos Esparsos

2 de março de 2020

Sobre Drummond, The Good Place e Felicidade

Filed under: Não categorizado — stellerdepaula @ 20:35

Em 1940, Drummond publicou uma das obras primas da poesia brasileira: o livro Sentimento do Mundo.

Livro sentimentos do mundo

Livro sentimentos do mundo

Em dos poemas do livro, Elegia 1938, Drummond diz:

 

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota 

e adiar para outro século a felicidade coletiva. 

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição 

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

 

Elegia é um canto de lamentação, normalmente escrito para que o autor lamente a morte de alguém querido. Vinicius tem uma bela elegia em homenagem ao pai morto e Cecília Meireles uma mais bela ainda, escrita para a avó que a criou.

Em Elegia 1938, Drummond lamenta a morte da alegria e do sentido da vida diante de uma realidade cada vez mais dura, mais violenta, mais opressora.

Àquela altura, a Itália já vivia um ditadura fascista, a Alemanha já vivia uma ditadura nazista e o Brasil estava sob a ditadura Vargas, que admirava e emulava o fascismo e o nazismo (Graciliano Ramos foi preso por Vargas em 1936, sem que nenhuma acusação tenha sido formalizada contra ele; também em 1936, Olga Benário Prestes, grávida, foi presa e enviada à Alemanha, onde foi executada numa câmara de gás em 1942).

Resumindo, o mundo já estava uma merda. Mas Drummond demonstra, em Sentimento do Mundo, que o pior ainda estava por vir, que tudo aquilo eram sintomas de algo muito mais grave, que já estava em gestação e logo explodiria.

Há algum tempo, fiz uma enquete no Instagram, perguntando aos meus seguidores:

Vocês são felizes?

A) SIM

B) COMO ASSIM?

Assustei-me com a resposta: 73% afirmaram que “sim”.

O que me assustou foi o fato de eu ter perguntado “você É feliz?” e, não, “você ESTÁ feliz?”

Numa pesquisa básica na internet, você encontra em dicionários, os seguintes conceitos para a felicidade:

– “A felicidade é um momento durável de satisfação, onde o indivíduo se sente plenamente feliz e realizado, um momento onde não há nenhum tipo de sofrimento”.

– “A felicidade é um estado durável de plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico”.

Observando essas definições mais, digamos, simples da felicidade, pergunto: como pode um sujeito SER feliz? Como pode alguém sentir-se pleno, realizado, satisfeito consigo, com sua vida o tempo todo? Você É feliz o dia todo, todos os dias? Não há, na sua rotina, chateações, desentendimentos, raivas, frustrações, perdas? Não rola uma dor de dente, uma briga com o parceiro(a). Nunca perdeu alguém amado, um amigo, um parente?

A felicidade é um pico, é um ponto culminante. Quando estamos felizes, plenos, num ápice de alegria, satisfação e contentamento, não queremos que nada mude, queremos que aquele sensação se prolongue, dure pra sempre.

Mas dura? Não, não dura.

E se durasse? Que motivação tem para acordar todo dia um sujeito que dia após dia se sente pleno, realizado?

O que nos move é a insatisfação, é a ambição, é o desejo.

Na série The Good Place, os personagens principais passam quatro temporadas tentando chegar ao lugar bom, ao paraíso. E chegam. Lá, encontram um lugar onde tudo é possível, onde o sujeito pode realizar qualquer sonho, qualquer desejo instantaneamente. Um lugar onde a pessoa pode aprender qualquer coisa, aperfeiçoando-se continuamente por toda a eternidade. Um lugar melancólico, nada desafiador, cada vez menos instigante à medida em que o tempo passa. Logo os bem aventurados que chegaram ao lugar bom fizeram tudo o que sempre sonharam fazer, viveram todas as experiências que queriam viver e… o que fazer depois? Como continuar dando valor a isso por toda a eternidade? Dar significado a um dia, quando se tem a eternidade pela frente? Como dar significado às coisas simples, quando você literalmente já viveu tudo o que sonhou viver?

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Os personagens chegam ao paraíso, ao lugar bom, e encontram-no habitados por seres apagados, que vivem como autômatos, pois não veem mais graça numa existência de eterna plenitude. A solução encontrada é genial: reconfigurar a vida espiritual, criando uma espécie de morte para a alma. Quando alguém se sentir pleno, sentir que já evoluiu tudo o que havia para evoluir, já viveu tudo o que havia para viver e for invadido por uma sensação de plenitude, atravessa um portal e se desintegra, perdendo a consciência de si mesmo, deixando de existir como espírito.

A felicidade é efêmera, por definição. Como a tristeza. Não se pode SER feliz. Pode-se ESTAR feliz. Assim como, mesmo na vida mais desgraçada, há de haver momentos de felicidade. Quem É triste o tempo todo provavelmente sofre de depressão e precisa de um acompanhamento médico.

Mas há outra questão mais inquietante no fato de 73% afirmarem SEREM felizes.

Se formos buscar conceitos mais complexos de felicidade, encontraremos, no dicionário de filosofia, o seguinte:

Felicidade. Em geral, é um estado de satisfação devido à própria situação do mundo. Por esta relação com a situação do mundo, a noção de felicidade difere da de beatitude a qual é o ideal de uma satisfação independente da relação do homem com o mundo e por isso limitada à esfera contemplativa ou religiosa. O conceito de felicidade é humano e mundano.

Eu tenho saúde, tenho uma situação financeira confortável, estou satisfeito com meu trabalho, tenho uma boa relação amorosa, as pessoas que mais amo estão relativamente bem. Tenho, portanto, tudo para ser feliz.

Mas como SER feliz, vivendo no país em vivemos, no momento histórico que vivenciamos?

Como sequer estar feliz vivendo num país que voltou para o mapa da fome, que tem investido na precarização do trabalho, que tem retirado cada vez mais direitos dos trabalhadores, que tem perseguido minorias, que tem investido no ódio, na violência, na mentira e na ignorância como política oficial?

Eu não consigo. Eu não consigo impedir que os sentimentos de revolta, de impotência e de frustração, de medo do futuro, me alcancem várias vezes ao dia.

É a felicidade, então, um projeto individual? É possível SER feliz apesar de tudo isso, apesar de toda a gritante desigualdade em que estamos inseridos?

Será a alienação a condição necessária para a felicidade?

É isso que me preocupa.

Voltando a Drummond:

 

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota 

e adiar para outro século a felicidade coletiva. 

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição 

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

 

Aceitaremos que, em 2018, 1.222 mulheres morreram vítimas de violência doméstica e que, em 2019, esse número cresceu para 1.310?

Aceitaremos que, em 2018, o Brasil bateu o recorde nos registros de estupros? Só no ano passado, 66.041 mulheres foram estupradas no país. Mais da metade das vítimas têm até 13 anos e três quartos conhecem agressor.

Aceitaremos que, em 2019, houve um aumento de 20% nos casos de injúria racial?

Aceitaremos que, em 2019, a extrema pobreza atingiu níveis de 12 anos atrás que o Brasil deve voltar ao mapa da fome?

*Estimativas da ONU indicam que das cento e oito milhões de pessoas que convivem diariamente com a fome no mundo, pelo menos nove milhões estão no Brasil. Dentre elas, cerca de sete milhões não têm sequer perspectiva de quando será sua próxima refeição, ao passo as demais estão em lares em que para que alguns comam, outros deixarão de comer. 

Tudo isso tira um tanto da paz de espírito que eu tento tanto cultivar. Tudo isso me enche de raiva, de angústia. E essa angústia é reforçada pela sensação de impotência (afinal, não posso, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan), sensação de impotência por saber o que está a meu alcance fazer em relação a tudo isso é muito, muito pouco.

Sim, individualmente, eu estou bem, sou um privilegiado, tenho vários motivos para agradecer.

Mas devo adiar para outro século a felicidade coletiva e me permitir, individualmente, ser feliz?

Steller de Paula

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